Enquanto Israel mantém arsenal atômico fora de tratados internacionais, potências pressionam o Irã, que segue sob inspeções. Analistas apontam disputa por hegemonia e manipulação de organismos internacionais.
Por Lucas Pordeus León - Repórter da Agência Brasil
São Paulo – 21 de junho de 2025
Há mais de três décadas, Israel acusa o Irã de tentar desenvolver armas nucleares, classificando o programa iraniano como uma “ameaça existencial” ao Estado judeu. A narrativa tem sido usada sucessivamente para justificar sanções, pressões diplomáticas e agora uma nova escalada militar no Oriente Médio, cujas consequências ainda são imprevisíveis.
Por trás do discurso, no entanto, está uma das maiores contradições da geopolítica internacional: Israel é o único país do Oriente Médio que nunca assinou o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP) e mantém, segundo estimativas independentes, um arsenal de até 200 ogivas nucleares. O Irã, ao contrário, é signatário do tratado e, historicamente, tem submetido seu programa nuclear às inspeções da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA).
Para analistas em geopolítica, a atual ofensiva israelense não se resume a impedir que Teerã desenvolva armamento atômico. O objetivo estratégico seria mais amplo: desestabilizar o Irã, enfraquecer sua capacidade econômica e militar e garantir a hegemonia de Israel no Oriente Médio.
Origens do programa nuclear iraniano
O programa nuclear iraniano remonta à década de 1960, quando o país era governado pelo xá Reza Pahlavi, monarca aliado dos Estados Unidos e da Europa Ocidental. Segundo o historiador Luiz Alberto Moniz Bandeira, autor do livro A Segunda Guerra Fria, o projeto foi impulsionado com apoio direto da Alemanha e dos EUA.
A guinada ocorreu em 1979, com a Revolução Islâmica, que derrubou o xá e colocou fim à subordinação do Irã às potências ocidentais. Sob a liderança do aiatolá Ruhollah Khomeini, o país adotou uma política nuclear restritiva. Khomeini chegou a emitir um fatwâ — decreto religioso — proibindo a fabricação de armas nucleares, por considerá-las incompatíveis com os princípios do Islã.
O desenvolvimento do programa nuclear foi retomado após 1989, com o sucessor de Khomeini, o aiatolá Ali Khamenei, que, embora tenha reforçado o caráter pacífico da iniciativa, passou a ser alvo de sanções e pressões internacionais.
“Desde o início, o programa nuclear do Irã sempre teve um caráter energético e tecnológico, vinculado ao desenvolvimento industrial do país”, afirma o cientista político Ali Ramos, especialista em Ásia e mundo islâmico.
Entre sanções, diplomacia e desconfiança
Nos anos 2000, o Irã ampliou seu programa de enriquecimento de urânio, gerando desconfiança no Ocidente. Apesar disso, Teerã manteve diálogo aberto com a AIEA e com diversos países. Uma das tentativas mais relevantes de acordo ocorreu em 2010, com a intermediação do Brasil e da Turquia, durante o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
O acordo previa que o Irã transferisse 1.200 quilos de urânio pouco enriquecido para a Turquia, recebendo, em troca, combustível nuclear para suas usinas. Mesmo com o aceite iraniano, os Estados Unidos, sob comando de Barack Obama, recuaram.
“O acordo articulado por Brasil e Turquia atendia exatamente aos termos propostos por Obama. Quando viu que a mediação de países do Sul global havia funcionado, o próprio governo americano sabotou a negociação”, afirma Moniz Bandeira em seu livro.
Para o professor de relações internacionais Robson Valdez, do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), a resistência dos EUA não era apenas técnica, mas também política. “O problema era aceitar que países médios, como Brasil e Turquia, tivessem protagonismo em um acordo de tamanha envergadura”, avalia.
O acordo que não sobreviveu a Trump
Em 2015, após anos de negociações, foi firmado o Plano de Ação Integral Conjunto (JCPOA), envolvendo o Irã e as principais potências mundiais — EUA, Rússia, China, França, Reino Unido e Alemanha. O Irã se comprometeu a restringir seu programa nuclear e, em contrapartida, obteve o levantamento de sanções econômicas.
A própria AIEA confirmou, em 2016, que Teerã estava cumprindo rigorosamente os termos do acordo.
Mas o JCPOA começou a ruir em 2018, quando o então presidente dos EUA, Donald Trump, retirou unilateralmente seu país do tratado, atendendo às pressões do lobby israelense e da ala conservadora americana.
“Trump rompeu não por descumprimento do Irã, mas como estratégia de política interna, buscando apoio de setores ultraconservadores”, afirma Ali Ramos.
O professor Robson Valdez acrescenta: “O acordo sofreu um processo sistemático de sabotagem liderado por Israel, que nunca aceitou qualquer possibilidade de reabilitação econômica e diplomática do Irã.”
AIEA sob questionamento
Em meio às novas tensões, a AIEA divulgou uma resolução, na véspera do ataque israelense ao Irã, afirmando que “não pode garantir que o programa nuclear iraniano seja exclusivamente pacífico”. A decisão foi imediatamente classificada como “politicamente motivada” pelo governo iraniano.
Para os analistas, a mudança de postura da agência não é casual. “É visível que a AIEA passou a atuar politicamente, como instrumento de legitimação da ofensiva israelense e da entrada dos EUA no conflito regional”, analisa Valdez.
Ali Ramos vai além: “As inspeções vinham ocorrendo normalmente até 2024. A partir do momento em que Netanyahu começou a falar abertamente em atacar o Irã, a AIEA muda o discurso. Isso não é coincidência.”
Duas medidas, duas balanças
Enquanto o Irã é cobrado sistematicamente por seu programa nuclear, Israel mantém sua política de opacidade nuclear, sem aderir ao TNP e sem permitir inspeções internacionais em suas instalações.
“É a velha lógica do direito internacional seletivo”, resume Ramos. “As regras valem para uns, mas não para outros. O que está em jogo não é o combate à proliferação nuclear, é a garantia da hegemonia militar e econômica de Israel no Oriente Médio.”
O que está em jogo
Mais do que um embate sobre armas nucleares, a crise atual reflete uma disputa pela redefinição das esferas de poder no Oriente Médio, em um cenário que envolve interesses energéticos, rivalidades históricas e as fragilidades das instituições multilaterais.
“O que estamos vendo é o colapso do direito internacional como conhecemos. Essa guerra é também a morte do multilateralismo”, conclui Ali Ramos.
Fonte:Agência Brasil